IV. Análise e interpretação das aparições marianas

Nesta parte, trabalharemos sobretudo com base no versículo Aparições, do Dicionário de Mariologia, citada na bibliografia ao fim deste trabalho.

IV.I. Aspectos Psicológicos
No início do século XX, Flournay enunciou o “princípio da exclusão da transcendência”, admitido pela Psicologia da Religião, segundo o qual a existência de Deus e demais seres e entidades sobrenaturais não constatáveis ou imediatamente deduzíveis pela experiência deve ser colocada entre parênteses, uma vez que os métodos da ciência não lhe permitem nem afirmá-los nem negá-los.
A Psicologia nada tem a dizer sobre o conteúdo de verdade teológica e eclesial das aparições de Maria, mas há uma verdade psicológica das aparições, cujo discernimento cabe ser determinado exclusivamente pelo psicólogo, através de técnicas e instrumentos metodológicos, os quais o teólogo não dispõe.

IV.I.I. Noções gerais
A Psicologia inclui as chamadas “aparições”, sejam de caráter religioso ou não, nos fenômenos alucinatórios.
A alucinação é uma percepção na ausência de um objeto físico que possa estimular os receptores sensoriais do sujeito.

IV.I.II. Interpretações psicológicas das aparições
A Psicologia tentou explicar de diversas formas compreensíveis o fenômeno das aparições, centrando-se na dinâmica do inconsciente, ainda que a noção de “inconsciente” varie muito de autor para autor.
1. Interpretação de corte mais psicanalítico: compreende as aparições como a realização alucinatória de um desejo pulsional, cuja representação foi inconscientemente reprimida ( neuroses ) ou negada a realidade do fato ( psicoses ).
2. Interpretação de corte mais junguiano e humanístico-existencial: as aparições são compreendidas como fenômenos que expressam experiências arquetípicas tipicamente humanas, provenientes do inconsciente coletivo, gozando de relativa autonomia em relação ao “eu”.
3. Interpretação de corte parapsicológico: explica as aparições a partir da parapsicologia ou utiliza hipóteses de percepção extra-sensorial, como a clarividência e a telepatia.

IV.I.III. Aplicação prática às aparições marianas
Em relação às aparições de Nossa Senhora, Antonio Vázques, autor da parte psicológica do verbete sobre as aparições do Dicionário de Mariologia, resume a sua posição em 4 pontos que julga imprescindíveis:
1. As aparições de Nossa Senhora - públicas ou privadas, individuais ou coletivas - podem ser psicologicamente interpretadas como fenômeno alucinatório, sem que isso comporte necessariamente uma conotação psicopatológica.
2. Para Vázques, a interpretação psicanalítica, complementada por uma psicologia da linguagem e da criatividade, continua a ser a mais adequada para se descobrir as motivações profundas e a dinâmica do inconsciente dos videntes em relação aos conteúdos significativos das aparições.
3. Como a ciência e a linguagem religiosas atuam como fator psicológico, uma psicologia e uma psicopatologia da religião teria algo a dizer sobre as aparições.
4. A psicologia, a psicopatologia e a psiquiatria, embora possuam meios para discernir a personalidade sã ou enferma dos videntes, trabalham ainda com muitas incógnitas a resolver no próprio nível psicológico.

IV.II. Aspectos Históricos

IV.II.I. Problemática atual
1. Importância das aparições e reconhecimento
Apesar da real importância das aparições ( Guadalupe atrai 7 milhões de peregrinos por ano; Lourdes, 4,5 milhões; Aparecida, 6 milhões ), seu estatuto dentro da Igreja é modesto e discutível.
Geralmente as aparições são mal recebidas e sufocadas pela Igreja; muitas são mais toleradas do que reconhecidas oficialmente. Os últimos reconhecimentos oficiais da Igreja católica foram as aparições em Beauraing (na Bélgica, de 29 de novembro de 1932 a 3 de janeiro de 1933) e Banneux (também na Bélgica, em 1933).
2. Compreensão das aparições
Em relação à sua compreensão - além da compreensão da Psicologia já apresentada -, se considerarmos como aparição a manifestação visível de um ser cuja visão naquele lugar ou naquele momento é inusitada e inexplicável segundo o curso natural das coisas, numa perspectiva racionalista como a de Marc Oraison (padre-médico francês falecido em 1980), toda aparição seria uma alucinação, uma vez que é uma visão sem objeto material.
Esta conclusão racionalista é falha porque:
- desconhece a possível diversidade dos modos de percepção e comunicação, que não se reduzem necessariamente aos 5 sentidos;
- desconhece a natureza do conhecimento, caracterizada por sua intencionalidade, isto é, pela sua capacidade de pôr-se em contato com uma realidade a partir de informações e estímulos subjetivos;
- ainda em relação ao conhecimento, este é um mecanismo mental através do qual o sujeito que conhece decodifica uma combinação de informações, distinguindo-as.
Resumindo, o conhecimento sensível não é redutível aos mecanismos subjetivos, sendo um ato intencional do sujeito, que alcança o objeto através de um processo cuja essência, porém, permanece misteriosa.
3. Diferença entre seres invisíveis de per si e de corpos glorificados
Todo conhecimento implica, em diversos graus, um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. Assim, seria simplista demais dizer que as aparições de seres invisíveis de per si, como Deus e os anjos, são única e necessariamente subjetivas.

Em relação a Deus, não podendo se manifestar em sua forma própria, estranha à visibilidade, comunica-se através de sinais:
- Moisés o conhece semelhante a um fogo;
- Elias, como uma leve brisa.
A manifestação visível do invisível pertence à teoria dos sonhos e não à percepção normal de objetos materiais. Os sinais através dos quais se dá a comunicação é relativa ao ambiente cultural de quem a recebe.

No caso de Maria (e também do Cristo ressuscitado), trata-se de um corpo glorificado. O estado de corpo glorioso, de que Paulo ressalta o caráter misterioso, pertence à ordem do espaço-eternidade, estranho ao espaço-tempo em que vivemos.
Maria se manifesta assumindo vestes, estatura e até idades diferentes, adequando-se aos que a vêem. A explicação clássica para isso é a adaptação pedagógica a cada pessoa que a vê, ao seu ambiente e à sua cultura.

IV.II.II. Aparições antigas e novas no povo de Deus
São comuns as aparições no Antigo Testamento. Nos Evangelhos são relativamente raras. Nos Atos dos Apóstolos, numerosas. As aparições continuaram na Igreja até os nossos dias.
Em relação a Maria temos:
- Antigüidade: aparições numerosas como a Gregório Taumaturgo (U 270); a Teófilo (relato muito difundido na Idade Média); a Maria Egípcia; o milagre de são João Damasceno (séc. VIII), ao qual Maria teria restituído a mão cortada pelo emir de Damasco, e outras mais. No entanto, essas histórias chegam a nós, freqüentemente, de modo incerto e pouco claro, ficando difícil distinguir o que pertence ao campo de experiência excepcional daquilo que constitui simbolização posterior.
- Época Moderna: podemos distinguir duas séries de aparições:
1. Na América: inicia-se em Guadalupe, no México, sendo que esta aparição se reveste de grande importância, pois se trata do lugar de fundação da Igreja latino-americana. Escolhendo um vidente e um lugar nativo, provocou uma superação do conflito entre opressores e oprimidos, nascendo daí um novo povo e uma nova cultura sobre o novo continente.
2. Na Europa, principalmente a partir do século XIX:
a) três aparições a santa Catarina Labouré, na rue du Bac, em Paris, ocorridas em 1830. As duas últimas dão origem à “Medalha Milagrosa”, a mais difundida medalha de todos os tempos. Estas aparições foram aceitas pelas autoridades da Igreja, mas jamais reconhecidas oficialmente, pois a vidente recusou-se a testemunhar.
b) uma aparição em Salette, em 19/09/1846, a dois pastores (Melânia, de 14 anos, e Maximino, de 11), com Maria chorando e conclamando a conversão. Foi oficialmente reconhecida pelo bispo dom Bruilard, em 19/09/1851.
c) dezoito aparições em Lourdes, a santa Bernadete Soubirous, de 11 de fevereiro a 16 de julho de 1858. Foram reconhecidas pelo bispo em 18/01/1862 e evidenciadas pela canonização de Bernadete.
d) única e silenciosa aparição em Pontmain, na Fança invadida pelos prussianos. Uma inscrição, aparecida no céu e decifrada letra por letra, conclama à esperança: “Ânimo, meus filhos, orai. Meu Filho deixa-se comover. Em breve, Deus vos atenderá”.
e) seis aparições no dia 13 de cada mês, em Fátima, Portugal, de maio a outubro de 1917, exceto em agosto. A última aparição foi caracterizada pelo milagre do sol, que impressionou uma multidão de setenta mil pessoas.
f) trinta e três vezes em Beauraing a cinco crianças;
g) nove aparições a Mariette Beco, em Banneaux, Bélgica, de 15 de janeiro a 2 de março de 1933. Foram reconhecidas pelo bispo de Liège, Dom Kerkhofs, em 22/08/1949.
h) outras aparições não foram reconhecidas, mas o bispo local autorizou o culto popular no local das aparições, em virtude da obediência e da devoção dos videntes e peregrinos. Foi o caso de Saint Bauzille de la Sylve (1873 ), de Pellevoisin (1876) e, mais recentemente, da Ilha Bouchard
B. Billet listou, a partir da década de 40, cerca de 200 aparições não reconhecidas, muitas vezes julgadas de modo desfavorável.

Surgem algumas questões diante desse quadro:
- por que a Igreja, tão tolerante no que se refere às curas (às quais nunca ocorreram sanções), é tão severa quando se trata de aparições?
- como promover um discernimento e uma pastoral que, sem complacências nem confusões deploráveis, se encarregassem desses fenômenos que, desde o Antigo Testamento, sempre tiveram o seu lugar na vida do povo de Deus?
As respostas a estas questões podem fazer chegar a algumas normas de discernimento.

IV.II.III. Hermenêutica e função das aparições
1. Sinais e aparições - inserem-se no quadro de uma lei constante na história bíblica e cristã: o Deus invisível se manifesta através de um conjunto de sinais visíveis.
2. Aparições e revelações - comum na época da “revelação’, as aparições apresentam dificuldades, já que a revelação concluiu-se com a geração apostólica. A solução teórica do problema consiste em admitir que uma revelação privada pode ter a função de atualizar, recordar e vivificar, explicar ou esclarecer a primeira “revelação”.
Esta solução teórica aponta para outro problema: a dificuldade de uma terminologia incerta e inadequada, por exemplo, na diferenciação e contraposição da teologia clássica entre revelações privadas e revelações públicas. Esta dificuldade, porém, encontra uma solução prática: as aparições chamadas “privadas” têm freqüentemente um caráter totalmente público e grande ressonância em toda a Igreja, como as de Guadalupe, Lourdes e Fátima.
Também fazer distinção entre revelação objetiva e subjetiva não seria satisfatório. A terminologia mais completa e adequada faria a distinção entre revelação fundadora e revelações particulares, que continuam conforme a diversidade dos tempos e lugares.
Sobre as aparições, Tomás de Aquino e Caetano destacaram que elas têm caráter mais prático do que especulativo. Na mensagem de encerramento do centenário de Lourdes (18/02/1959), o Papa João XXIII sublinhava que “elas transmitem mais normas de conduta do que novas verdades”. As aparições e revelações privadas apelam mais para a esperança que para a fé.
3. Perda de valor das aparições - as aparições e revelações vieram perdendo crédito sistematicamente.
a) Teologia dogmática: define-as de modo negativo, como acessórias, não necessárias, conjeturais, gratuitas, arriscadas, em oposição à revelação.
b) Teologia fundamental: figuram como não-lugares teológicos.
c) Exegese: contrapõe a revelação bíblica (palavra inspirada) às revelações posteriores.
d) Teologia moral: deixou de lado este campo que lhe diz respeito, tanto ao tratar da fé como das profecias.
e) Mística: desconfia desses fenômenos, tratando-os como “epifenômenos” transitórios e arriscados.
f) Espiritualidade: desconfia, pois há o risco de assumirem o papel de novos evangelhos ou novos pentecostes, ofuscando o essencial ao invés de iluminá-lo.
g) História da Igreja: trata-as como “de parente pobre”.
h) Direito Canônico: trata-as numa perspectiva de limitação e até repressiva.
Essas avaliações negativas e críticas podem fazer prolongar em nossos dias o conflito dos profetas do Antigo Testamento com as instituições reais e sacerdotais, agora entre o Magistério (cuja uma das funções é salvaguardar o depósito da fé) e o profetismo (cuja função é a renovação, a reforma, o caminho para o futuro). Dessa forma, o profetismo está sempre arriscado a parecer um magistério paralelo.
A essa repressão institucional, agregou-se ainda a intensificação da repressão racionalista.


IV.II.IV. Estatuto das aparições através dos séculos cristãos
1. As origens - nos Atos dos Apóstolos, nas Atas dos mártires e nas vidas dos santos, freqüentemente se apresentavam fenômenos similares às aparições. O montanismo (pregação a respeito de visões e revelações escatológicas tidas por Montano - 157-212) provocou desconfiança, porque ameaçavam suplantar a autoridade oficial e arrastar a Igreja a desvios incontroláveis. Daí a tradição hesitar favoravelmente, como com são Cipriano, ou com desconfiança, como a de Santo Agostinho em relação às visões.
2. Idade Média - as revelações de santa Brígida, santa Gertrudes, santa Catarina de Sena e santa Madalena de Pazzi foram altamente consideradas, inclusive pela autoridade da Igreja, enquanto outras foram temidas, criticadas e até caluniadas.
3. Concílio Lateranense (1516) - tomou medidas restritivas em relação às aparições, reservando-as ao exame da Santa Sé, antes de serem publicadas ou pregadas. Ante alguma necessidade urgente, o bispo local deveria ser comunicado, o qual tomaria três ou quatro homens sábios e de confiança a fim de acurar o caso. Estas restrições tinham duas razões de ser: 1) no plano da fé, proteger a Igreja da proliferação de visões, numa época obscura, pietista e inquieta, em que a prudência se fazia necessária; 2) no plano do governo, as aparições locais podem dificultar o governo dos outros bispos e da autoridade suprema. Entretanto, o Concílio manteve o princípio de que a autoridade não deve “extinguir o Espírito” (cf. 1Ts 5,19-20).
4. Concílio de Trento (1563) - analogamente ao Concílio Lateranense, prescreveu que nenhum novo milagre (considerando como “milagre” tudo o que tem caráter sobrenatural, inclusive as aparições) deve ser admitido sem o reconhecimento e a autorização do bispo local, o qual deve consultar teólogos e outros homens de fé antes de se decidir, podendo, no entanto, dirimir controvérsias que surjam, não sem antes consultar o arcebispo e os outros bispos da província, reunidos em concílio provincial, o qual, por sua vez, não tomará nenhuma decisão sem a consulta prévia ao Papa. Esta decisão tende a eliminar erros muito numerosos naquele tempo.
5. Bento XV (1740-1758) - definiu formalmente o estatuto das aparições, relativizou o seu valor e estabeleceu a função do Magistério nesse campo. Às revelações particulares aprovadas pela Igreja, para a edificação dos fiéis, não se deve conceder assentimento de fé católica, apenas assentimento da fé humana, ou seja, ninguém tem obrigação de crer nas aparições privadas, mesmo reconhecidas pela Igreja.
6. Decretos do século XIX - tem, desde então, guiado Roma em relação às aparições. Os decretos e respostas sobre Nossa Senhora das Mercês, em Santiago do Chile (de 12/05/1877), Lourdes e Salette, por exemplo, aprovam a devoção, mas dessa aprovação não se pode deduzir nenhuma aprovação direta ou indireta de aparição, revelação, graça de cura ou outras coisas, quaisquer que sejam ou como ocorreram.
7. Pio X - confirmou essa atitude na encíclica Pascendi (1907), autorizando a adesão às tradições piedosas e revelações com precauções e reservas, aplicando uma norma geral, que vale para as imagens e os ritos. Embora se possa prestar um culto sem reservas a Cristo (e aos santos canonizados), o sinal utilizado - isto é, as imagens, relíquias ou aparições - é sempre considerado relativo.
8. Novo questionamento (ou questionamentos atuais) - o presidente-fundador da Academia Mariana Internacional, Pe. C. Balic, colocou em questão o rigor dessas restrições, submetendo o problema ao livre debate no Congresso Mariológico Internacional de Lourdes, em 1958, centenário das aparições. Foram apresentadas duas interrogações pelo Pe. Balic: 1) o assentimento dado a essas aparições e revelações privadas é de fé divina? Pe. Balic recorda que Suarez e Lugo responderam positivamente a esta questão feita pelos carmelitas de Salamanca: “Como é que um crente que tem uma revelação proveniente de Deus e a percebe como tal não poderia dar-lhe adesão de fé divina? 2) os consentimentos oficiais de Lourdes e Fátima por parte dos papas não vão além da simples autorização? Pe. Balic disse que “o caráter sobrenatural do fato de Lourdes não implica uma simples e tênue probabilidade, mas certeza moral. As aparições de Lourdes devem ser consideradas como capítulo à parte, não sendo mescladas com as outras aparições, aprovadas apenas pela autoridade local ou pela Santa Sé com a cláusula restritiva “ao que se diz”. Pode-se perguntar se, neste caso, não há outra autorização infalível e se não se deve conceder às aparições de Lourdes, ao invés de um ato de fé apenas humana, uma adesão de fé teológica.”
Dois oradores responderam ao questionamento de Pe. Balic: Pe. Valentini, salesiano, e Dom Roy, OSB, o qual defendia a tese mais comprometida: 1) as aparições de Lourdes, reconhecidas de modo análogo ao das canonizações, têm caráter de fato dogmático; 2) trata-se de fé eclesial, fundada no testemunho da Igreja e requerida por sua obediência filial.
A controvérsia voltou durante o Congresso Mariológico de Fátima, com as exposições dos padres I. Ortiz e Moreira Ferraz, destacando este último o caráter positivo (e não apenas permissivo) das aprovações da Igreja. Y. Congar, K. Rahner e Ortiz de Urbina disseram que se deve reconhecer que as aprovações romanas a certas revelações privadas vão além da simples autorização ou do nada obsta. Rahner escreve que não compreende bem por que a revelação privada não deveria ser aceita por todos aqueles que dela têm conhecimento, quando se sentem suficientemente certos de que ela provém de Deus. Para ele é injustificado, ilógico e perigoso pretender um grau de certeza tal que, se aplicado à revelação oficial, tornaria impossível qualquer fundamento razoável de fé na revelação cristã.
Com Rahner pode-se admitir que, subjetivamente, a adesão às revelações privadas pertence ao campo da fé teológica, não só para o vidente, mas também para aqueles que recebem o seu testemunho profético.
O próprio Papa João XXIII, em sua mensagem por rádio dirigida a Lourdes em 18/02/1959, destaca que os papas consideraram um dever recomendar as aparições à atenção dos fiéis.
Enquadrar as aparições na categoria de fatos dogmáticos é uma questão ambígua e discutida. Antes do Concílio Vaticano II, a maioria dos teólogos admitia que as canonizações dos santos envolviam a infalibilidade enquanto fato dogmático. Acontece que o juízo sobre a santidade, com base no exame de dados particulares e conjeturais, é da mesma natureza que o juízo que tem por objeto as aparições. Assim, como a teoria clássica pôde considerar infalível o juízo das canonizações e considerar o juízo sobre as aparições como simples tolerância, enquanto não comprometesse em nenhum momento a fé? Hoje quase não se discute a infalibilidade das canonizações. A teologia está mais reservada em relação ao que se definia como fato dogmático e sua infalibilidade.

IV.II.V. Discernimento das aparições
1. aspecto teórico: valorização do sobrenatural sensível - a fé se define como adesão a verdades (ou realidades) não evidentes, com base na palavra, no testemunho, sendo, pois, convicção daquilo que não se vê (cf. Hb 11,1) e antecipação daquilo que se espera. No Evangelho de João lemos: “Felizes os que não viram e creram!” (Jo 20,29). As visões e aparições sobrenaturais atingem essa regulamentação enquanto o próprio sinal não seria convencional, institucional e natural (caso dos sacramentos e dos sacramentais), mas sim sobrenatural, dado por graça. Assim, a posição da Igreja em relação às aparições é estranha e ambígua, pois também elas são manifestações sensíveis e sobrenaturais.
1.1. fé X visões
· As visões e aparições não substituem a fé, mas a evidenciam, colocando-a como princípio para reconhecer e distinguir aquilo que se manifesta e que parece pertencer mais à ordem dos sinais do que da intuição imediata das realidades sobrenaturais, como se percebe pela diferenciação, nas aparições de Maria, no que se refere às vestes, à idade, à fisionomia, à cor dos olhos. Falar de sinais não é o mesmo que falar de “ilusões”. Todo conhecimento humano é conhecimento por meio de sinais, que permitem, com sua mediação, alcançar a própria realidade de modos bastante diferentes. Falar de sinais não exclui que uma aparição possa ter caráter objetivo, mas essa objetividade não deve depender de condições mensuráveis, que caracterizam materialmente o conhecimento sensível.
· Uma aparição é geralmente um fenômeno de pequena duração; a fé é permanente.
· A fé é certeza, no sentido definido pela teologia, não pela evidência do objeto, mas pelo testemunho íntimo do próprio Deus; a aparição só pode ser identificada através de complicadas e diferenciadas conjecturas (daí a prudência da Igreja).
· A mensagem de uma aparição não se acrescenta à palavra da Escritura e da tradição; ela recorda ou manifesta com nova intensidade aquilo que já foi revelado: sua função é a de reavivar a fé e a esperança.
A necessidade de presença, de sinais, de luz e de evidência sempre formou parte da fé, tanto para os profetas do Antigo Testamento quanto na Igreja primitiva e ao longo dos séculos. A fé procura a luz e os sinais de Deus. Quando esses sinais dão uma contribuição excepcional de presença e de evidência, exigem muito discernimento e prudência, pois estão sujeitos a desvios e subjetividade. Uma linha repressiva e puramente negativa da crítica externa (racionalista, psicanalítica, etc.) não é necessariamente sadia e fecunda. A melhor ação sempre foi discernir e canalizar os sinais vindos do alto e seus frutos.
2. Regras e critérios
A partir de tudo o que foi exposto, pode-se concluir para um discernimento adequado:
a) as revelações privadas não podem ser postas no mesmo plano da revelação divina feita por Cristo, registrada nas Escrituras e transmitida pela Tradição da Igreja; são apenas uma recordação ou uma explicação particular.
b) os textos restritivos do Magistério sobre as revelações privadas destacam ao mesmo tempo tanto a ambigüidade dessa questão (sujeita ao erro, à ilusão e à exaltação), como o caráter conjectura dos juízos diretos sobre elas pela autoridade da Igreja.
c) as aparições devem ser avaliadas modestamente, em obediência à autoridade, o que não impede que essas revelações se manifestem aos videntes como luz e testemunho do próprio Deus.
d) é preciso relativizar a distinção original entre aparição (objetiva) e visão (subjetiva) e, com maior razão, eliminar a fórmula segundo a qual toda aparição sobrenatural pertence ao campo da alucinação, uma vez que não temos meio algum para julgar a questão: o ser que se comunica (Maria em seu corpo glorificado) nos é desconhecido, tanto na duração quanto no gênero de existência corporal, além do que a condição do vidente também nos foge. As aparições constituem um fenômeno gratuito, inacessível, irrepetível ao bel-prazer e que se subtrai a todo experimento psicológico. Não podemos excluir que Deus (ou uma pessoa pertencente à comunhão dos santos, como Maria) possa se manifestar de modo autêntico. Sabe-se apenas que o meio que se usa para se manifestar adapta-se necessariamente à natureza do sujeito que a recebe e, normalmente, pertence a um tipo de decodificação diferente do conhecimento sensorial comum.
e) É importante fazer a distinção entre saúde e patologia.
3. Maria e as aparições - quais são as afinidades dogmáticas e bíblicas com as aparições marianas?
a) no plano teológico: sendo Maria quem está mais próxima de Cristo, é também a que está mais próxima do outros membros do corpo místico na comunhão dos santos. Isso está de pleno acordo com:
- a sua condição de Serva do Senhor;
- a sua função materna no corpo místico (Mãe de Deus, Nossa Mãe);
- com sua condição glorificada no corpo e na alma (Assunção).
São Luís Maria de Monfort gostava de salientar que aquela que teve uma missão na primeira vinda de Cristo (primeira escatologia) é chamada a ter uma missão também na sua segunda vinda.
b) no plano bíblico:
- Maria, mãe do “varão que regerá todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12,5), aparece (indistinta da Igreja) como “sinal no céu” (Ap 12,1).
- O Cristo do Apocalipse é o cordeiro imolado e glorificado. Maria aparece sob a luz sobrenatural (“vestida de sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”, Ap 12,1), mas igualmente nas dores do parto, o que significa a cruz (cf. Jo 19,25-27; 16,21) e as perseguições da Igreja. Em graus diversos, os traços da descrição de Ap 12 são encontrados nas aparições de Guadalupe, da Medalha Milagrosa e outras.
- O Novo Testamento caracteriza Maria através da comunicação com o céu (cf. relato da Anunciação e, em certo sentido, o Natal) e da relação com Jesus (visitação a Isabel e as bodas de Caná). Maria ocupa lugar particular, de primeiro plano, na difusão carismática do dom de Deus.
Desse modo, a comunhão dos santos é o lugar onde devemos pôr as aparições, sabendo-as discernir com comedimento e sobriedade.

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